UM AZAR DO CARAÇAS.
Baterem à porta quando eu estava no banho. Vou abrir, não vou...
Estive mesmo para não ir pois não me deu jeito nenhum, mas dada a insistência lá me resolvi fechar as águas, a quente e a fria, enrolar à cintura uma toalha e mesmo descalço arriscando um escorreganço nos mosaicos, ir ver quem era e o que queria tão cedo na manhã.
Ainda a porta não estava bem aberta, o que me impediu de ver quem era, e apanhei com um balázio mesmo no meio da testa que me privou de tudo, nomeadamente da existência o que também não me deu jeito nenhum atendendo a que tinha duas reuniões marcadas mais um almoço com um fornecedor antes de iniciar as férias marcadas e pagas com antecedência para aproveitar a campanha lacoste low cost da agência de viagens onde trabalha a Vanessa, um arranjinho que o meu vizinho que é gerente dum banco e tem um apartamento cá no prédio, tem fora do casamento.
Para além do susto que apanhei, pois um tiro é um tiro e faz um cagaçal do caraças, é claro fiquei chateado. Evidentemente!
Uma pessoa faz planos, tem tudo organizado e pago, com o bilhete levantado de véspera para evitar esquecimentos e atrasos, e afinal não serve de nada porque ali estava eu esparramado no lajedo, com a tampa esburacada e meio levantada deixando à mostra parte da mioleira que me foi útil algumas vezes (e outras nem tanto), e cuja serventia é agora zero.
E mais, como foi a primeira vez que me mataram não sabia como é que se cai quando nos dão um tiro e por isso cai à balda, ficando com uma perna dobrada debaixo do tronco e a outra esticada apontando para a parede do hall com o pé metido no balde dos chapéus-de-chuva que eu, ao cair e dada a minha inexperiência, derrubei com a cabeça.
Ouviam-se ruídos de portas a bater e dos passos de pessoas correndo escadas abaixo, tudo aos gritos de:
-ACUDAM!
-SOCORRO!
-CHAMEM A POLÍCIA!
-O QUE É QUE SE PASSA?
-Aiiiiiii F#*@-SE, TORCI UM PÉ! Aiiiiiiii Aiiiiiiiiii Aiiiiiiiiii Aiiiiiiiiii
-Calma calma, isto não é nada; até parece que morreu alguém.
Gradualmente o sossego. Não sei quanto tempo passou até nas escadas do prédio silencioso e silenciado começar a ouvir um caminhar vagaroso, parecendo que quem lá vinha viesse com receio mas sem saber de quê. Demorou um bocado, certamente porque foi vendo os andares anteriores inferiores, até que parando frente à minha porta, abriu-a sem pressas e viu-me!
Era um polícia; via-se bem que era um novato, e ao ver-me assim caído e com tudo à mostra, o cérebro e o resto já que a toalha se soltara, embranqueceu, recuou e quase desmaiando ainda teve forças para comunicar com a esquadra, para me virem buscar. Será que vou ser preso?, pensei eu. Se calhar um gajo para levar um tiro tem que ter uma licença para estar dentro da legalidade. E o facto de um gajo não saber quando é que isso acontece poderá ser uma atenuante? E se for assim do tipo das cartas de condução que têm prazo e depois é preciso renovar?
Se for assim tou lixado.
Demoraram algumas horas até que apareceram uns gajos que nunca tinha visto e um deles, médico pelo que percebi, atestou que eu estava morto! Olha a novidade, pensei eu; se tivesses telefonado eu podia ter-te poupado o trabalho.
Ataram-me, embrulharam-me e enquanto me carregavam escadas abaixo ouvi o meu vizinho gerente do banco a falar com a Vanessa dizendo-lhe baixinho:
-Chiça Vanessa, já viste a nossa sorte?
-Podes crer querido, podes crer! Se não fosse todo este barulho ainda estávamos na caminha…
-Ainda bem que o teu marido se enganou no andar…
Então eu morri por engano?
Quer dizer: eles andam enrolados e eu é que “pago”? e sem uso-fruto!!!
Admite-se que um gajo saiba que a mulher anda a “enfeitá-lo” e não saiba a morada correcta do amante da mulher! Repito: não se admite uma coisa destas.
Tive mesmo um azar do caraças!