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BAGOS DE MILHO

COMIDA PARA AVES e OUTROS MAMÍFEROS EM RAÇÕES DE IMAGINAÇÃO COM SORRISOS À MISTURA

BAGOS DE MILHO

COMIDA PARA AVES e OUTROS MAMÍFEROS EM RAÇÕES DE IMAGINAÇÃO COM SORRISOS À MISTURA

A MINHA JANELA

Moro naquele bairro mais desgraçado de toda a cidade. As ruas são como guetos onde todos se conhecem e todos se detestam. Onde os ódios não se escondem. Pelo contrário, saiem à rua e exibem-se ostensivamente durante o dia. De noite, porém, arrastam-se pelas paredes e dissimulam-se pelas esquinas dispostos a desferirem o golpe que acabe de vez com o objecto desse mesmo ódio.

É aquele bairro nos confins da cidade grande. É o último bairro que vê quem sai da cidade mas é também o primeiro que avistam os que para a cidade vêm. É o bairro onde não faltam carências, nem quezílias, nem agressões de todos os tipos e intensidades. Só faltam mesmo aquelas coisas que possibilitam uma existência com um mínimo de dignidade.

A minha rua é pequena e estreita. Ao início tem de um lado um armazém que em tempos guardava sacas de frutos secos: amêndoas, nozes, avelãs e figos. Nessa época quase todas as noites foi “assaltado” proporcionando-nos não só uma ceia tardia mas igualmente a matéria-prima para os negócios na manhã seguinte quando vendíamos a peso o produto roubado (acrescentado das cascas vazias que sempre ajudavam na balança), pelas lojas finesse (agora ditas gourmet) da zona mais elegante da grande cidade. Hoje está fechado e vazio. Já foi usado pela malta jovem para “amorosos” encontros nocturnos, e agora é pelos mais velhos para outro tipo de encontros: chutos e inalações.

Na outra esquina mantém-se ainda vivo um bar. Já foi tudo. Tasca, discoteca e até uma tentativa de jazz clube. Agora é somente o sítio para beber umas cervejas. Aos fins de semana acumula como sala de engate proporcionando um rendimento ao “Francês” (dono do dito espaço) pelos quartos do primeiro andar, cuja discreta entrada fica situada na penumbra  da minha  rua.

É bom explicar que o estabelecimento ostenta o pomposo nome de “Le Cavô” porque o seboso dono foi emigrado em França (daí o ser conhecido pelo “Francês”), e dizendo-se profundo conhecedor dos bás-fondes parisienses (termos que lhe saiem regularmente em qualquer contexto como numa afirmação de viajado e conhecedor do mundo), explica que em Paris “todos os bares de la nuite são cavôs”! E não adianta dizer-lhe que é caveau e não cavô; porque ele é que sabe! Porque ele é que esteve em França!

O único candeeiro existente não passa de um tubo ferrugento em forma de U pregado na parede, na esquina por cima do Le Cavô, e que termina num redondo resguardo esmaltado onde uma lâmpada se esforça sem muito sucesso por dissipar as muitas sombras da noite. E não são raras as vezes que serve de alvo ao campeonato de fisgadas dos miúdos dos arredores que entendem ser a lâmpada o objecto ideal a abater.

Com meia dúzia de casas de cada lado, a minha rua termina num muro que a separa da linha do comboio. Separa fisicamente, só fisicamente, pois todas as noites quando os oiço passar buzinando fortemente, acompanho o trac-trac das rodas nos carris e deixo-me viajar com eles, imaginando que estou indo para os locais os mais diversos que são todos muito, muito longe da minha rua. Quando criança tantas foram as vezes que, pulando o muro, brinquei na linha do comboio com todos os outros miúdos da rua. Corríamos atrás do último vagão dos de mercadorias que abrandavam para irem para na nossa estação, e pendurávamo-nos para ganharmos uma viagem. Até fazíamos campeonatos para ver quem aguentava mais tempo até que os nossos fracos braços mais forças não tinham. Queda e trambolhão era uma garantia. A maior de todas a brincadeiras era “tourear” os comboios que vinham lá ao longe e saltarmos para fora do  meio das linhas quando eles já estavam muito perto. A existência de uma dupla via e a possibilidade de um comboio esconder um outro que viesse em sentido contrário, nunca nos passou pela cabeça.

É estranho o prazer que nos dava brincar na linha do comboio…

Agora, sem os ver, sei quando é o rápido, o expresso, se é o internacional ou o-para-em-todas. À noite reconheço-lhes os “passos”! Não sei explicar as diferenças nem como as distingo, mas que me soam diferentemente, soam…! E em cada noite “apanho” um comboio diferente. Nunca “viajo” duas noites seguidas no mesmo comboio. Já fui à Índia, à China e ao Japão. Já visitei a Itália, a Rep.Cheka e as ilhas gregas. Já passei pela Islândia quando fui a Nova Iorque e ao Canadá. Ontem demorei-me  pela Nova Zelândia e Austrália e ainda esta semana não falharei o Brasil. E África?! Já lá estive muitas vezes e nunca me canso de voltar. São as paisagens; os nasceres do sol e os ocasos; são os animais; são as gentes; são os espaços abertos; são as planícies; são como os meus olhos sentem; são como os meus sentidos vêem.

Nem importam os mares e os oceanos. Os meus comboios podem ir a todo o lado.

Hoje choveu todo o dia. Aquela chuva miudinha que não incomoda e a que não se liga mas que nos ensopa totalmente a roupa. E continua a esta hora enchendo de lágrimas escorrendo pela face da minha janela. Sentado na minha cadeira junto da janela da minha casa, vejo brilharem as pedras da calçada reflectindo a luz que a lâmpada emite. Porque hoje não houve (ainda) tiro ao alvo. São pedras escorregadias, negras, que moram nesta rua há mais anos que alguma vez eu terei. Estão gastas. Até me parecem cansadas, se tal fosse possível. Estão velhas e gastas; e cansadas!

Na esquina do Cavô surgem dois vultos que entram na porta nº 1 subindo para um dos quartos. À distância e no escuro que os envolve não percebi quem são. Talvez que nem os conheça. Com a moda actual já todos vestem calças e por isso não posso afirmar se são de sexo diferente ou nem por isso. O que, sinceramente, nem me interessa. O som abafado das músicas tocadas no Cavô soa mais forte de cada vez que sai ou entra algum cliente. Um deles saiu aos tropeções amparado a uma forte dose de álcool mas não foi longe. Ali está sentado no passeio encostado à parede ora cantarolando para um público imaginário ora discutindo com todos os que os lhe povoa a mente. Ao longe já se ouve o barulho que deixa adivinhar a aproximação do carro de recolha do lixo. Mais longe ainda, uma ambulância faz-se ouvir. Pela segunda vez o carro da polícia passa vagarosamente frente ao Cavô. O bêbado percebe que é a polícia e não deixa de os mandar bardamerda ao mesmo tempo lhes mostra um dedo ainda que meio torto. Por sorte que os polícias devem ser conhecidos do bairro e aceitam a cena de boamente. Do outro lado da rua, da porta nr. 7, sai a D. Irene para ir trabalhar. Começa ás 5 da manhã no mercado abastecedor. Só voltará lá para as 2 ou 3 horas da tarde depois de ter vendido todas as flores. O marido, Juvenal Costa (mais conhecido por Chico Canelas) ainda não apareceu. Pela certa está ainda na batota e a ganhar. Porque quando perde e fica sem cheta, volta para casa mais cedo, antes de D. Irene sair. Sabe-se que chegou porque as discussões são acaloradas e bastante audíveis. Há quem diga que ela lhe assenta umas porradas no lombo. Mas como nunca ninguém viu… É certo, porém, que ela já desancou alguns só por lhe terem gabado o avantajado par de mamas que ela orgulhosamente exibe e que mal se acomodam nos generosos decotes que faz questão de usar.

Na casa ao lado, no número 5, mora o Fanan (Fernando da Costa) dono duma loja de ferragens. Vende pregos e parafusos, ferramentas diversas e materiais para canalizações. Também faz chaves e arranja fechaduras. Coxeia levemente da perna esquerda devido a um desaguisado matrimonial. A mulher, uma ruiva baixinha de olhos verdes e ancas largas, farta de ser agredida de cada vez que o Fanan chegava a casa bêbado (dia sim, dia sim), afagou-lhe os costados com o cabo de uma enxada, (comprada propositadamente numa loja da concorrência), fracturando-lhe a bacia e deslocando-lhe o fémur. De tão bêbado que estava só no dia seguinte percebeu o que acontecera quando a mulher já tinha ido de viagem. Mora sozinho desde há quatro anos. Sai de casa cerca das 8 horas da manhã para apanhar o autocarro que passa na rua de cima às oito e três minutos. Mas nunca consegue o que o irrita fortemente. Para acalmar e enquanto espera pelo autocarro seguinte entra numa taberna para “provar” um copo de vinho branco; assim o dia já lhe correrá melhor, diz ele. Só o volto a ver já noite cerrada quando regressa a casa amparado às paredes até acertar na porta. Não sei como é possível mas o que é certo é que nunca falha a própria porta nem a fechadura já que consegue abri-la à primeira tentativa.

Ao lado, no número 3 vivem a “Ti Aurora e o Ti Luís”. Casados há mais de 50 anos. Todos na rua o sabemos pois eles nunca se cansam de o dizer a toda a gente, mesmo quando tal não lhes perguntam. É um casal simpático e de quem todos gostam. Só tem um senão: como se deitam sempre cedo acordam também cedo e entre as seis e as sete horas da manhã já se fazem ouvir na rua. A “Ti Aurora” cantarolando enquanto varre o chão da rua frente à sua casa e o “Ti Luís” a desafiar o cão (um rafeiro de nome Bóbi) jogando um pau para o muro dos comboios e incitando-o (ao cão, evidentemente), aos gritos para que o vá buscar afim de recomeçar o “jogo”. Quando o Bóbi, já cansado, se deita aos seus pés tem garantida uma série de festas do dono e também uma boa dose de ração não é esquecida. Só interrompe a mastigação se algum gato aparece caminhando sobre o muro dos comboios.

A porta com o número 1 que é a entrada para os quartos da pensão; só se abre lá mais para a noite. Durante o dia permanece encerrada e quando assim não acontece a “Ti Aurora” encarrega-se de a fechar com estrondo, enquanto desfia uma ladainha condenando as poucas-vergonhas que ali se passam todas as noites. Ladainhas essas que estende até ao número 1-A, que é a porta do Cavô. O tal Francês responde-lhe com um sorriso amarelo e um oui madame oui, bonjour…, que é a única maneira de não alimentar uma conversa que não lhe interessa minimamente.

Deste lado da rua os números 2 e o 2A são as portas do velho armazém. Na casa número 8 não mora ninguém; as paredes estão destruídas parcialmente, o tecto abateu e desde então é esconderijo de gatos vadios que caçam os ratos que por ali aparecem. De uma das janelas saiem já alguns ramos de trepadeira.

A casa número 4 foi a morada do Sr. Joaquim e da D. Isabel os pais de Fátima a menina loira que muitas vezes brincava connosco. Quando os pais morreram regressou da América onde esteve emigrada durante quase dez anos trabalhando em limpezas, servindo às mesas no restaurante de Mr. Michel Janvier e finalmente como gerente desse mesmo restaurante. É verdade que lhe foi bastante útil ser naturalmente bonita e ter um corpo bem feito. Foi por isso que o tal Michel se interessou por ela, mas também ajudou bastante ela saber e querer ir mais além e trabalhando para isso. O ter-se relacionado intimamente com o Mr. Michel foi mais uma consequência do que um propósito.

Agora dirige um club meio privado, situado numa zona central da grande cidade. Está aberto desde cedo na noite até bem tarde na madrugada, oferecendo música ao vivo e servindo refeições tardias-ligeiras a uma clientela de intelectuais, artistas e actores, e de outros os que vivem os dias nas noites, mas que nunca deixam de estar presentes noite após noite. A seu favor também ajuda o facto de ter “importado” um estilo made in USA: todas as empregadas são mulheres bonitas de peitos generosos, vestindo saias curtas e blusas bem decotadas.

E no número 6 moro eu. Já foi a casa dos meus pais quando se casaram e é onde eu sempre habitei. A minha rua foi o meu recreio, o campo onde eu e outros aprendemos a jogar à bola e o meu parque de jogos que quase sempre se estendeu às linhas dos comboios. É no escuro deste meu quarto, junto à janela, que todas as noites olho a rua e relembro todos esses momentos. Vivo o meu mundo de noite à minha janela. Relembro todos aqueles meus amigos de brincadeiras e que já não vejo há “séculos”. Apesar de todo o tempo que passou ainda consigo ver-lhes os rostos como eles eram; crianças ainda e depois quase adultos. E já se passaram tantos anos… Há tantos que quase nem me recordo de quantos; sei que foi depois daquilo acontecer. Lembro-me de regressar a casa e sentir o silêncio que rodeava a rua. E lembro-me do pavor que sentia de cada vez que passava um comboio. Mas fui-me habituando gradualmente. Foi muito difícil após a morte dos meus pais. Primeiro morreu ele e passados nem dois meses morreu ela. O meu pai morreu nas obras. Caiu de uma altura de 15 andares. Foi instantâneo. O funeral foi logo pela manhã num dia de sol e de vento. Poucos acompanhantes para além da minha mãe e de alguns amigos dele lá do trabalho e das tabernas. A minha mãe morreu de tudo. De cansaço sobretudo. De todos os cansaços. Morreu sentada no sofá, onde sempre ficava depois de me deixar na cama. Foi para o cemitério numa tarde de chuva. De muita chuva. Mas a rua estava cheia de gente que a acompanhou até onde ficou sepultada, cobrindo a campa de flores. De muitas flores. Todos gostavam da minha mãe. Todos! E todas as noites eu e a minha janela nos recordamos de tudo e preparamo-nos para o dia seguinte. Eu, a minha janela companheira de todas as horas, boas e más. E também a minha cadeira de rodas que desde há muito me suporta; ela sabe que foi um comboio que me deixou assim. Um comboio que não aceitou a brincadeira de um miúdo que lhe fazia caretas à distância e que no momento do salto para fora dos carris tropeçou não conseguindo fugir a tempo… Os comboios não gostam de brincadeiras, dizia-me a minha mãe entre soluços olhando-me deitado na minha cama quando regressado do hospital após várias vezes operado.

Os comboios são maus, não se cansava de repetir em surdina num sopro soluçado: os comboios são maus…

Todavia, com o passar dos anos, são agora eles que me apoiam levando-me a viajar por esse mundo quando a minha imaginação me ajuda. É então que posso sair da minha rua, da minha janela, do meu pequeno mundo e perder-me nesse outro mundo que nesta outra janela existe. Uma “janela” chamada internet!           

Não estou só, porque não me sinto só.

Claro que a presença da Fátima (mesmo quando à noite está ausente) é muito importante e é ela que continuamente incentiva a minha vontade de escrever o que na minha imaginação “existe”.

Todas as manhãs quando regressa do restaurante é ela a primeira a saber o que de noite imaginei. E ambos deitados na mesma cama, abraçados, definimos que forma dar às palavras para transmitirem o meu pensamento.

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