O CINÉFILO
Já é tarde. Ainda não é madrugada mas as duas horas da manhã já se foram à muito. Lá fora o frio é maior que o escuro da noite onde nem a lua se atreve a mostrar-se. E o vento, sacana, não se ouve. Sente-se, porém, no ténue tremelicar das folhas das árvores. Olho o copo, vazio de cerveja, mas sem vontade de me levantar para ir buscar outra. Só de pensar que tenho que atravessar meia casa até à cozinha, abrir o frigorífico e voltar a fechá-lo, procurar o abridor de garrafas, abrir a cerveja e voltar a percorrer meia casa, tira-me toda a vontade de beber mais uma cerveja. Não por estar inválido ou tolhido por qualquer enfermidade. Nada disso. Estou mesmo é com uma dislexia danada (nome fino que dou à preguiça), que me subjuga o cérebro e, consequentemente, me imobiliza. Não fora isso já teria ido fechar a porta do carro e teria trazido a bagagem para dentro de casa. Tudo resultado da malfadada viagem que fui forçado a fazer bem contra a minha vontade, pois estava bem melhor no hotel da zona turística, com praia privativa, ginásio e jacuzzi do que neste ermo onde nem as cabras vêm tosar a erva. Olho as paredes do quarto, pintadas de branco e sem qualquer adereço pendurado, imaginando que são telas de cinema por onde passam filmes que já vi e consigo até imaginar outros filmes que nunca vi. Sempre fui assim. Imagino coisas e ao mesmo tempo vejo-as. Sempre que o afirmava publicamente olhavam-me num misto de espanto e de incredulidade, e gritavam-me: o gajo é maluco! Passei a guardar só para mim a minha imaginação e as minhas visões. Visões é um termo forte demais para o que quero dizer, mas à falta de melhor…! E a verdade é que até mesmo no escuro vejo essas minhas imaginações. Às vezes, tal como hoje, é bom pois acompanhando-me não deixam que as horas passem tão lentamente. Só não gosto é de filmes de terror, em especial depois de anoitecer. Começo a ficar nervoso, angustiado e por mais de uma vez grito desalmadamente e acabo por não ver o resto do filme. Dos que eu gosto mesmo são dos musicais e aqueles de aventuras em que parece que vai tudo correr mal e no fim só corre mal para os maus. Os musicais são os mais difíceis porque requerem muita imaginação para as canções e eu aí tenho mais dificuldades. Quando estou com disposição também imagino filmes de bailados com acompanhamento de musicas conhecidas, (adoro as do Mozart), e então vejo as bailarinas e os bailarinos como que voando pelos palcos, em pontas, e com aquelas elevações graciosas, parecendo serem tão leves, tão leves… De filmes cómicos também gosto, e rio-me alarvemente sempre que os vejo. E o que eu adoro os de desenhos animados? Isso é que eu gosto! Mas não posso vê-los porque não consigo imaginar os desenhos dos bonecos. Já tentei, isso já. Mas como nunca tive jeitinho nenhum para o desenho…, é por isso que não dá. Mas, continuando, o vento já sopra com mais força fazendo abanar algumas portas e janelas. De súbito oiço o estrondo da porta do carro a fechar-se e pela janela do quarto vi um clarão. Rezo para que não seja uma trovoada. De repente: PUM-CATRAPUM-PUM-PUM! É a trovoada que aí vem, com chuva à mistura e puxada a vento. Que chatice, penso eu. Lá tenho que ir buscar a bagagem senão molha-se toda. Levantei-me a custo, vesti o roupão e lá fui corredor fora até à porta. Quase a ela chegando eis que se abre de rompão e estrondosamente, empurrada pelo vento que quase me derruba. O gato preto entra esbaforido e bufando assanhado, tropeça nas minhas pernas quase me fazendo cair. Nas minhas costas ouve-se o barulho de uma jarra de loiça a quebrar-se ao cair no chão da cozinha. Senti um arrepio! Chegado à porta olhei para fora e junto ao carro não estava nenhuma bagagem. De súbito um novo relâmpago que iluminou tudo em volta e de dentro do carro soou uma gargalhada ao mesmo tempo que o trovão ribombou. A porta do carro abriu-se. Eu não quis ver mais nada. Corri para o quarto enquanto ouvia atrás de mim o som dos passos pesados de quem me perseguia e foi quando…
Enervadíssimo e angustiado acendi a luz.
Catano pah!, nunca consigo "ver" um filme destes até ao fim!
ilustração copiada de: http://www.filmbug.com