a NOITE e a MADRUGADA
Já é tarde na noite.
Já é madrugada.
Sentado num sofá que já foi de um lustroso veludo azul e que agora apresenta as mazelas dos anos passados a suportar outros ânus, tento ler o livro que seguro preguiçosamente nas mãos.
Não consigo concentrar-me nem na grafia, nem no conteúdo.
O programa televisivo é maçador; é uma espécie de repetição de outros programas maçadores que todas as noites nos querem servir a estas horas tardias.
Clique! Desligado.
Sinto que estou naquela fase intermédia quando ainda não tenho sono mas que parece que tenho.
Deito o livro invertido sobre a mesa, sem o fechar, evitando assim procurar algo que sirva para marcar onde parei a leitura. Uma preocupação inútil já que não fixei o que estive lendo; nem mesmo se estive a ler.
Apago o candeeiro de mesa, uma garrafa electrificada encimada por um abajur de cor verde esbatido e que ilumina a sala com uma luz raiada verde-amarelada.
Só me levanto depois de, na penumbra que me rodeia, conseguir ver bem definidos os contornos da mobília, evitando assim percalços dolorosos anteriormente repetidos.
Deito-me na cama companheira de outros sonos e de outras insónias, mantendo o quarto sem luz acesa.
Quente!
O quarto está quente!
Não é bem calor; é aquela temperatura que nos faz sentir “pegajosos” apesar de inertes.
Já sei que não vou adormecer. Olho o tecto sem o ver, pensando no que fazer.
Finjo-me adormecido?, Levanto-me?
Mantenho-me assim indeciso entre dez a quinze minutos, esticando o corpo em diversas posições ao mesmo tempo que agrido a almofada vezes sem conta, resmungando contra mim mesmo porque não me imponho a mim próprio.
Levanto-me!
Volto para a sala, acendo o candeeiro de mesa, sento-me no sofá de veludo e mazelas e volto a ligar a televisão.
O programa maçador deu lugar a um programa manhoso onde é explicada a forma como uns seres minúsculos e transparentes vivem nas profundezas dos oceanos.
Tem tradução simultânea e também tem legendas.
Enquanto observo vou pensando: que raio de programa para esta hora.
Estará alguém a ver isto?
Mudo de canal. Um concurso!
Volto a mudar. Outro concurso!
Mudo uma vez mais: Vendas por catálogos!
Atrevo-me a mudar de canal? Nem pensar. Clique! Desligado.
Levanto-me e “arrasto-me” até à varanda.
A rua, fracamente iluminada por um velho candeeiro pregado na parede de um dos prédios, está deserta.
No céu uma lua quase cheia, que reflecte mais luz que o velho candeeiro, não deixa ver as estrelas; desconfio que estejam lá, mas não posso confirmar.
Detenho-me fixando aquela lua quase cheia, muito branca e levemente amarelada.
Parece-me aquela máscara teatral que representa o drama. Parece uma lua triste…
Um pássaro passa voando, rasando a varanda!
Não é um pássaro. É um morcego!
Tão rápido se mostrou e mais rápido ainda desapareceu, numa busca contínua dos insectos que lhe servem de alimento.
Gostava de ter asas.
Gostava de ter asas e voar para onde quisesse e quando quisesse.
Gostava de voar sem destino, somente ao sabor da vontade e por uma vez ao olhar, tudo visse desde cima. O mar e a terra; os rios e os campos; as ondas e as árvores…
Deve ser muito bom ter asas, mas só as aves as podem ter e só os pássaros se aproveitam delas. Os aviões também têm, mas eles não contam.
E todavia a imaginação voa sem necessitar de asas reais cobertas de penas!
E voa quando quer e para onde quer, sem destino e ao sabor da vontade, sem hora de chegada. Só tem hora de partida!
Chegas em silêncio e pões os braços à minha volta encostando a cabeça ternamente às minhas costas, perguntando num sussurro: não te vens deitar?
Volto-me e correspondendo ao abraço, dou-lhe um beijo.
-Hoje estou assim; parece que tenho sono mas não consigo adormecer. Tentei ler aquele livro, aberto sobre a mesa, mas nem mesmo assim, o que não é normal.
-Anda, vais ver que agora já consegues.
-Ok, vamos então.
Volto a apagar o candeeiro de mesa e, abraçados, caminhamos lentamente em direcção ao quarto enquanto lhe vou contando:
-Estava ali a apensar como seria bom ter umas asas para...