O pôr-do-sol já aconteceu mas no quarto ainda se nota alguma claridade, assim uma meia penumbra, deixando totalmente escondidos na sombra os cantos à direita e à esquerda da janela cuja portada está meia fechada. Uma cortina de renda esconde a vidraça dando um pouco de privacidade ao quarto, juntamente com os cortinados castanhos. A cama está vazia mas desfeita deixando ver a depressão da forma dos corpos que ali estiveram deitados. Uma cómoda antiga com tampo de pedra onde se apoia um espelho em moldura de madeira trabalhada, um roupeiro com duas portas “de correr”, uma delas totalmente tapada com um espelho, uma pequena mesa sem gavetas junto da cama e uma cadeira de braços e assento em “palhinha” completam o mobiliário todo ele também castanho.
Habituando-me “ao claro/escuro” vou distinguindo as formas das coisas. Consigo ver, até, alguns detalhes dos móveis.
Volto-me e acendo o candeeiro de tecto equipado com quatro lâmpadas mas onde só uma responde. Aos pés da cama está um sapato. Sobre a mesinha o cinzeiro de vidro onde os restos de cigarros repousam, torcidos e esmagados. No chão ao lado da cama um livro, aberto. Junto da parede acompanhado por uma garrafa de vinho vazia está o outro sapato, deitado.
No ar sinto uma mistura de odores. Os cheiros da madeira e o dos teus perfumes já que em regra nunca fechas bem os frascos que os encerram. Estás ausente e no entanto a tua presença é quase palpável. Tenho a sensação que ao virar-me estarás mesmo atrás de mim, olhando-me num misto de ternura e de gozo, sempre com aquele teu sorriso alegre e despretensioso.
Estou parado, estático, entre a cama e a cómoda onde repousam os frascos de perfumes, as pulseiras e os colares, alguns anéis e outros adereços de que tanto gostas. Também um boião de creme esfoliante que ali ficou esquecido (e aberto), dois isqueiros em ouro que te foram oferecidos pela empresa em diferentes natais, meio maço de tabaco e a tua agenda que te acompanha para todo o lado. Mas não nesta viagem. Porque esta viagem não estava agendada. Porque esta viagem foi uma surpresa para todos, especialmente para ti. Porque nesta viagem não tens que te preocupar nem com pormenores, nem com detalhes. Porque esta viagem foi a tua última viagem.
Estou parado, estático, entre a cama e a cómoda.
Sinto-me vaguear pelo quarto de cada vez que fecho os olhos.
Sinto-me flutuando pelo quarto de olhos abertos, não vendo nada mas vivendo as vezes que partilhámos aquele quarto e aquela cama, fumando os cigarros que fumámos, bebendo o vinho que bebemos e que sempre reclamavas porque dizias (franzindo um sobrolho) não estar suficientemente fresco, voltando a vestir o pólo cinzento do avesso e só perceber quando cheguei ao emprego, revendo-te a chegares a casa a “coxear” porque tinhas partido o salto dum sapato e zangares-te porque isso me deu vontade de rir enquanto reclamavas continuadamente com o sapato, com o salto e comigo!
Estou parado, estático, entre a cama e a cómoda. A única lâmpada viva tem um último brilho e fina-se deixando o quarto às escuras porque lá fora a noite já chegou e os fracos e raros candeeiros de rua pouco fazem para iluminar o quarto.
Sento-me na cama. Penso, mas não penso.
Deito-me na cama sem me dar ao trabalho de despir o casaco nem de me descalçar.
Com a cabeça na tua almofada respiro o perfume dos teus cabelos, respiro o perfume dos teus abraços, dos teus carinhos, dos teus beijos…
Fecho os olhos devagar e voltas a estar ali.
Adormeço.
É possível que tenha adormecido com um sorriso nos lábios.
É possível que tenhamos passado a noite abraçados!