A ÚLTIMA BEBIDA
Jantei bastante cedo e fugindo de noticiários requentados e das novelas repetitivas fui para a rua num passeio sem destino convencido que no espaço de uma hora, uma hora e meia no máximo, estaria de regresso a casa.
A noite estava morna.
O vento, quente, soprava suavemente por entre a folhagem das árvores.
Não entrei no café da esquina propositadamente. Para me obrigar a andar caminhei em direcção à cervejaria que fica à distância de quase meia hora, junto à praia. As ruas cheias de gente passeando vagarosamente, desfrutando das últimas noites de verão. Miúdos corriam rua acima, rua abaixo e no escuro da praia amontoavam-se numa algazarra de gritos e gargalhadas por entre corridas e despreocupadas quedas na areia solta.
Sentei-me ao balcão e pedi um café e um whisky velho, em balão. Claro que sem gelo! Olhei em redor e eram só “cámones”, rosados que nem lagostas cozidas. Ocupavam as diversas mesas na esplanada acumulando junto à parede as muitas garrafas vazias, umas poucas de vinho e muitas outras de cerveja. Falando muito alto e soltando sonoras gargalhadas, dir-se-ia que estavam em casa.
Chegou o Xico das Irós! Sentou-se no banco ao meu lado, acendeu um cigarro e, à laia de “boa noite” disse:
-O que é que pagas?
Aquilo foi mais uma afirmação disfarçada de pergunta, do que uma pergunta…
-Pede o que quiseres, pá!
-Oh Manel, dá aí uma cerveja. Não é dessas pá, é das de litro!
-Está com muita sede, Xico.
-Não é para beber, é para levar. Esta noite vou à pesca que a maré está a dar robalos. E também safias e doiradas.
-Todo o dia esteve um vento do caraças, e o mar esteve picado…
-E depois? E não vou para o mar! Vou lá para o cimo das rochas…
-Vais para a gruta, queres tu dizer.
-Pois, desço pelo socalco que são só uns sete metros e fico ali abrigado na gruta. Levo o petromax, levo aqui uma “bucha” e levo uma garrafa de vinho tinto.
-Então e a cerveja?
-É a sobremesa! Disse rindo-se. Vais ver o peixe que vou trazer; menos duns 25 kilos não há-de ser.
-Vais sozinho?
-Pois vou. Porquê?, também queres ir?
-Eu?, estás parvo ou quê? Viste-me alguma vez ir à pesca?
-Não me lembra. Mas se nunca foste ias hoje. Há sempre uma primeira vez.
-Pois há! Mas a minha não é hoje. E menos com o tempo que está, de vento e de frio.
-Isto não é nada de mais. Já estou habituado. Há mais de 30 anos que faço isto. Acho que o mar até estranha quando não me vê lá no cimo das rochas, ou na gruta a pescar.
-Ok Xico, tu é que sabes…
-Pois sei, pois sei. Bem, vou-me embora que não tenho a tua vida. Vai lá para o quentinho dos teus lençóis antes que adoeças… gritou-me com uma gargalhada desde a porta da cervejaria enquanto agarrava nos apetrechos de pesca e na mochila, onde já guardara a cerveja de litro.
Acabando de beber o whisky e pagar a despesa, voltei para casa apressando o paço numa tentativa de fugir daquele vento cada vez mais agreste que ameaçava soprar toda a noite. O som das ondas do mar propagava-se pelas ruas da aldeia, “sentindo-se” o bater forte nas arribas.
Pesca eu? Nem pensar…!
Ainda não eram 7 horas da manhã quando a vizinha nos acordou, com enorme alarido.
Algo assustado, levantei-me, abri a janela e…
-Oh vizinho, houve uma grande desgraça… parece que o Xico das Irós caiu ao mar.
Merda!
Vesti-me rapidamente, calcei os ténis e corri para as arribas. Quase todos os pescadores e as mulheres já lá estavam.
-Oh mestre Tóino, já se sabe alguma coisa? Como foi? Quando?
-Pouca coisa. Aqui o Águsto é que estava com ele. Disse que já se estavam a vir embora e a cana do Xico escorregou pela rocha e ficou presa na lage do coito.
-Eu bem lhe disse para ele largar da cana, mas teimoso como é, não quis saber e foi buscá-la. Foi quando a magana da onda veio e apanhou-lhe as pernas e lá foi ele. Nunca mais se assomou à tona! Tá aqui o balde com o peixe dele; são 30 kilos, p’ra mais e não p’ra menos. O que é que se faz a isto?
-Não se há-de estragar. Dá-se à Josefa. Onde é que ela está? Já alguém a avisou?
-Foi lá a minha mulher. E p’ra lá está porque ainda não voltou.
-Então é isso, levam-se os peixes e depois ela que resolva. Vai dizer que não os quer mas isso não interessa. Ou vendemos ali à cervejaria e depois entregamos-lhe o valor.
-O mestre Tóino é que é homem para tratar desse assunto. Não é?
-Tá bem, cá ver o balde que vou já lá. E depois a minha mulher lá levará o dinheiro.
Não pude, mentalmente, deixar de sorrir ao perceber a separação de tarefas. Enquanto que os negócios são para os homens as funções sociais são para as mulheres.
São assim os pescadores! É uma das profissões que mais riscos corre, e talvez por isso, é também composta pelos homens mais solidários que conheço, para com os amigos e companheiros de faina mas sem jeito para “esses assuntos” que são coisas das mulheres.
A equipa de busca e salvamento já estava em acção. Os pescadores sabiam que o mais certo era o corpo do Xico só aparecer passados alguns dias.
Se aparecer…, diziam!
Ainda continuei por ali um bom bocado, pensando no Xico; Entrámos para a escola no mesmo dia e nesse mesmo dia vivemos o bom e o mau. Nunca soubemos a razão dos socos que nos demos nem porque não ficámos zangados. No dia seguinte o Xico ofereceu-me um canivete porque era uma coisa que todos os pescadores tinham. E ele achou-me com pinta de pescador. Eu dei-lhe uma esferográfica com o emblema de um clube de futebol, porque era o clube preferido dele. Ter utilidade para escrever era o menos importante. E muitas outras lembranças e acontecimentos que vivemos juntos, e também com outros miúdos, me vieram à memória durante aquelas duas ou três horas que andei pelas falésias.
Não mais me vou esquecer que aquela cerveja foi a última bebida que eu lhe paguei. De alguma maneira foi a última que bebemos juntos!