UM AZAR NUNCA VEM SÓ!
Tudo começou com um azar do caraças.
Antes que o relógio marcasse as cinco horas da manhã já eu estava sentado no carro com o volante à minha frente e preparado para “arrancar”.
Mas faltava-me a chave que deixara em casa sobre a mesa da cozinha onde estivera a beber um café nexpresso-Roma!
Já antes, e ao levantar-me da cama, sem acender a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira, bati com o dedo mínimo do meu pé esquerdo num dos pés da cómoda o que me obrigou a gritar diversas e variadas interjeições de “alívio” e me levou a coxear até ao WC.
Após aliviar-me, pretendi aliviar a sanita do que lá depositei porém de água nem pinga; esquecera-me de pagar e factura no último dos últimos dias que tinha sido três dias antes. Abandonei a matéria em repouso e fui beber o café que fiz aproveitando um resto de água do luso que, na garrafa de plástico original, desde a passada semana descansava no frigorífico.
Saí tendo o cuidado de não bater com a porta; contudo a corrente d’ar foi mais forte que eu e… catrapum!
Ainda ouvi um resmungar de protesto vindo do quarto, mas nem liguei. Desci as escadas e entrei no carro que estacionara na garagem privada no dia anterior e cujas portas nunca trancava por isso mesmo: ser uma garagem privada. Quem é que tranca o carro na própria garagem?
Saí do carro deixando a porta aberta, subi as escadas e…
Porra, e as chaves?
Já sei: estão sobre a mesa da cozinha junto com as do carro.
Bati levemente na porta à espera que ela me ouvisse para a abrir, mas ao mesmo tempo sem grande barulho para que ela não acordasse. (??)
Nada; nem rumor!
Voltei a bater.
Nada.
Bati mais uma vez.
O mesmo resultado: nada!
E o tempo a passar e eu cada vez mais atrazado.
Bati novamente e desta vez com mais força.
-QUEM É?, gritou ela lá do quarto e seguramente sem se levantar.
-Sou eu…
-O QUE É QUE QUERES? DEIXA-ME DORMIR…
-Preciso de entrar e esqueci-me das chaves… disse eu num sussurro.
-O QUÊ?
-Não tenho a chave e…
Percebi um reboliço a movimentar-se a caminho da porta ao mesmo tempo que da casa do vizinho se ouviam protestos de quem tinha sido acordado antes da hora.
E primeiro que a minha se abrisse abriu-se a porta do vizinho, um gajo que trabalha nas docas na descarga de navios e que costuma fazer turnos até à meia-noite ou mais.
-Afinal que barulheira é esta?
-Olá vizinho, bom-dia…
-Bom dia o quê?! Você não me…
-Desculpe, desculpe! É que eu esqueci-me da chave e…
Foi então que a minha porta se abriu salvando-me mesmo a tempo do que quer que fosse o vizinho estivesse disposto a dar-me! Ele fechou a porta com estrondo e eu escapuli-me para dentro do apartamento empurrando-a contra a mesinha com o tampo de vidro coberta de revistas cor-de-rosa e de outras cores, que se espalharam pelo chão. As revistas e os cacos de vidro do tampo de vidro da mesinha que não resistiu à súbita pressão dos glúteos dela.
Gritos e mais gritos protestando pela quebra da mesinha, por tê-la obrigado a acordar de madrugada, por se ter levantado sem necessidade própria, e até por já estar farta (diz ela) de me aturar.
Mais gritos do vizinho do lado e também dos vizinhos quer de cima, quer dos de baixo.
Corri à cozinha, agarrei nos dois molhos de chaves e baldei-me escadas abaixo em direcção à garagem.
Eentrei no carro, chave na ignição accionando o motor, marcha a trás e wrummm… KRÁSCHX!
Porra! Rebentei com a porta da garagem!
Na escada e das janelas do prédio ouviam-se os protesto gritados a plenos pulmões por tudo o que eram condóminos!
O meu vizinho, total e completamente descalço, surgiu da porta interior de acesso à garagem olhando-me como se fosse um lobo esfomeado que visse um cordeiro à frente.
Saí do carro, corri para a rua passando com dificuldade pela abertura entre a parede e a porta arrombada, e fugi o mais rápido que pude rua abaixo.
Ainda não era dia mas os candeeiros já estavam apagados; na paragem do “bus” algumas pessoas olharam (pareceu-me) assustadas.
Continuei ouvindo gritar atrás de mim o que me deu força para correr ainda mais sem me preocupar por onde o fazia.
O cão que dorme junto das caixas de fruta da mercearia da esquina levantou-se assustado obrigando-me a um salto acrobático para não cair ali porém fazendo-me desiquilibrar e a percorrer uns quantos metros aos tropeções até que me estatelei um pouco mais à frente, contra um carro patrulha da polícia ali estacionado, partindo um farolim trazeiro e “aplicando” uma mossa no capot do porta-bagagens.
Chegaram os agente da autoridade ainda eu estava por terra.
Olharam o carro, olharam para mim e disse um deles:
-Bonito serviço!
Menos mal, pensei eu, se ficou bonito...!
E disse o outro agente:
-Levante-se! Quem é você?
Confesso que me custou um bocado a levantar-me; tinha o tornozelo esquerdo torcido e não me podia apoiar no respectivo pé; acho que o braço direito estava torto e os dois pulsos não pareciam em melhores condições; da cabeça com dois ou três bocados de plástico vermelho espetados, escorriam-me fios de sangue.
-Xenhor guarda eu xou o xuxé e moro ali enxima naquele prédio no xêxto pixo e…
-Pouca conversa. A sua identificação sff
-Num tenho, deixei no carro. Xabe Xenhor guarda…
-Eu não sou guarda; sou agente da polícia!
-Poix poix, Xenhor agente, eu arrombei a porta da garaxe e depoix…
-Ah sim? Para dentro da viatura e vamos para a esquadra; e cuspa os dentes partidos antes de entrar que não queremos os estofos sujos porque não há dinheiro para limpezas.
Lá vim eu a caminho da esquadra sujeito a ser preso por danificar a viatura da polícia, e ainda ter que arcar com as respectivas despesas mais o arranjo da porta da garagem, e do carro, sem contar com os necessários meios de fuga de disfarce e de habilidade para conseguir escapar ao vizinho do lado.
Tudo isto por ter saído de casa à pressa para conseguir os dois bilhete para o concerto da Madona, que ela tanto pediu e que eu me esqueci de comprar!
E eu que nem gosto da Madona. Raios partam a Madona!