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BAGOS DE MILHO

COMIDA PARA AVES e OUTROS MAMÍFEROS EM RAÇÕES DE IMAGINAÇÃO COM SORRISOS À MISTURA

BAGOS DE MILHO

COMIDA PARA AVES e OUTROS MAMÍFEROS EM RAÇÕES DE IMAGINAÇÃO COM SORRISOS À MISTURA

A CASA À BEIRA DA ESTRADA

Sempre que passava naquela estrada, estreita, por entre as árvores que, espaçadas, pareciam nascer das searas de trigo e de milho nos campos a perder de vista, aquela casa prendia-me o olhar. Porquê não sei. Talvez por ser a única existente naquele lugar.

Não era muito diferente de outras que já vira, nem era especialmente bonita. E no entanto em cada viagem ficava ansioso durante  o caminho até por ela passar; e vê-la perder-se na distância deixava-me ligeiramente angustiado. Será que voltarei a passar por aqui? Será que a voltarei a ver?

A primeira vez que a vi era eu miúdo. Ia sentado no banco traseiro do VW Carocha. Os meus olhos mal chegavam à janela do carro. Ainda assim, vi-a! Caiada de branco, flores à frente por baixo da janela e os dois degraus que davam acesso à porta de entrada. Claro que nessa primeira vez só vi mesmo a casa. Os pormenores foram-me chegando lentamente, juntando-os a cada passagem. A porta é castanha tal como as portadas das janelas que nunca vi abertas. Nem as janelas nem a porta. Tem uma chaminé alta e o vermelho das telhas “comido” pelo sol deixa-as numa tonalidade indefinida entre o rosa e o laranja. Não sei o que existe nas traseiras da casa, se algo mais para além dos campos cultivados. Não sei se existem galinhas ou outros animais. Nunca parei para ver. Nalgumas vezes vi um velhote à porta, sentado num dos degraus; o mais alto. Tinha os cotovelos apoiados nos joelhos e descansava a cabeça com o queixo sobre as mãos cruzadas. O chapéu, velho de muitos sois, caído para a frente escondia-lhe quase totalmente o rosto. Lembro-me que estava fumando. Encostado à parede descansava um cajado. Não resisti e acenei-lhe, num gesto misto de olá/adeus. Não sei se me viu. Noutras vezes uma menina com um vestido branco decorado com desenhos coloridos estava junto das flores debaixo da janela. Acenei-lhe. Acenou-me. Continuei a vê-la insistindo naquele gesto de despedida até que a curva da estrada as escondeu. A menina e a casa. Em todas as viagens continuei a ver a casa. E continuei a querer ver a menina, de cabelos loiros. E continuei a acenar-lhe correspondendo ao seu acenar. Foram mais as vezes que não a vi. E por isso, de cada vez que a via, era uma alegria. Porque só tinha possibilidade de as ver, a menina e a casa, duas ou três vezes por ano. Fui vendo a menina crescer e a substituir os vestidos com desenhos por jeans e tops. E o velhote cada vez mais curvado e o chapéu escondendo-lhe o rosto cada vez mais. Não sei quando deixei de o ver. O cajado nunca mais esteve encostado à parede junto da porta. Já faz tempo que deixei de ver a menina dos cabelos loiros. Depois notei que as flores à frente por baixo da janela eram cada vez menos. E menos. E menos. Até que secaram, mortas de sede. Numa das vezes que por lá passei a chaminé tinha ruído abrindo um enorme rombo no telhado de onde um grande número de telhas já tinha desaparecido. Já vi a porta aberta. E as portadas das janelas também. Percebi que a casa estava morrendo aos poucos. Sem a família que lhe dava vida e sozinha onde nada mais existia, desistia de se manter erguida. Senti que ruía lentamente, todos os dias sempre mais um pouco, até que nada restasse de pé.

Porque agora, mesmo para iniciar as férias estão todos com pressa de chegar deixei de por lá passar desde que foi construída a auto-estrada. Continuo a lembrar-me da casa e do velhote e da menina dos cabelos loiros, de cada vez que viajo para sul. Quis voltar a vê-la mais uma vez. Uma última vez. E apesar dos protestos não fui pela auto-estrada. Fui pela velha estrada, estreita, mas não a encontrei. Já não seguia por entre as árvores. Porque já não haviam árvores. Já não era a estrada estreita porque tinha sido alargada. E tão alargada foi que a enterraram. Já não existia a casa à beira da estrada.

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